15 Dezembro, 2018
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28 Setembro, 2008 Ricardo Vargas

As estratégias emergentes e a impossibilidade de ser visionário

In Exame

Blade Runner: arqueologia conceptual

 

Apesar de não ter sido um seguidor do culto Blade Runner, gostei do filme o suficiente para assistir ao final cut que Ridley Scott fez este ano para o quarto de século da obra.

 

Os cenários são maquetas e a qualidade da imagem é arcaica, mas isso é perdoável. O espectador pode ter com esses défices de qualidade técnica um reviver da ingenuidade perdida. Eu tive. Por isso, quando apareceu um grande plano de Los Angeles em 2019 esbocei um sorriso benevolente e ajustei-me na cadeira.

 

 

 

 

Mas pouco depois sofri um choque brutal. As cenas iniciais tinham um entrevistador a fazer um teste de admissão numa empresa enquanto fumava. Aliás, as personagens em geral comiam cigarros.

 

Nesse momento tive uma epifania: o filme é um relatório sobre como nós observávamos o futuro há 25 anos atrás. Não é um filme de ficção científica, mas sim uma expedição arqueológica conceptual. Quem imaginaria há 25 anos que hoje não seria possível fumar em locais públicos fechados?

 

Ao imaginar o futuro, o realizador condensa tudo o que num dado momento é possível extrapolar sobre a condição do mundo e as direcções da sua previsível evolução. Como uma cápsula do tempo, essa informação avança intacta até ao momento em que a acção se passa e permite-nos comparar o presente imaginado com o que realmente aconteceu.

 

Mais do que quaisquer outros, os filmes de ficção científica mostram o quanto a nossa imaginação está subordinada ao zeitgeist de uma época. Com esta ideia em mente entretive-me a ver as diferenças entre o presente e a sua representação passada.

 

O real supera sempre a imaginação

 

O mais interessante não é que os elementos fantasiosos que habitam o filme ainda não existam: carros-nave voadores, andróides escravos, colonização inter galáctica. A ausência de necessidade que a humanidade tem destas coisas permite-me considerá-las como ideias extravagantes, mais do que visões do futuro.

 

O que me colou ao ecrã foi o que existe na realidade e que não está sequer esboçado no filme. Não há um rato, um computador portátil, um PDA, um flatscreen, um touchscreen. Vemos máquinas grandes com ecrãs minúsculos onde letras verdes descem aborrecidas. Onde está o Windows? Onde está a internet como referência de tudo? Vemos montes de botões e nenhum teclado de PC, nem físico nem virtual. Vemos um telefone com imagem, mas é fixo. Onde estão os telemóveis? O wireless? O mp3? Os comandos por voz estão presentes, mas é tudo mecânico e a omnipresença actual do software não se adivinha. Vemos uma atmosfera industrial onde o petróleo que quase não temos é esbanjado. Nenhum carro eléctrico. Nenhuma solução de transporte colectivo. Já nem falo do design das coisas, tão anos 80.

 

Os filmes de ficção científica provam a nossa impossibilidade de imaginar a vida num prazo alargado. Mostram claramente como o conhecimento, os mitos e estereótipos de uma época limitam a imaginação humana. Aparte o folclore habitual de alienígenas e robots, ao longo de 3 ou 4 décadas a realidade supera sempre a imaginação mais fértil. É certo que algumas das coisas presentes nos melhores filmes acontecem, mas o que acontece que não está lá é esmagador.

 

A capacidade de inovação das empresas é imprevisível na sua marcha para criar e satisfazer necessidades nos clientes. Ninguém tem imaginação suficiente para criar uma visão do futuro suficientemente realista. Os gurus falam em tendências mas ninguém arrisca dizer qual vai ser o próximo produto a criar um mercado a partir do zero. Essa é a essência da inovação. A sua força simultaneamente criadora e destruidora.

 

Aceitar que as nossas visões globais sobre a realidade futura são tacanhas é fácil. Mais difícil é tirar daí conclusões para a vida empresarial.

 

É verdade que uma visão empresarial é algo muito mais restrito do que a descrição completa de um contexto social. Mas nem por isso os cenários que as empresas criam para as suas estratégias acertam mais do que os dos realizadores de cinema.

 

As certezas não se dão bem com a complexidade

 

Porque é que a comunicação vulgar dos telemóveis actuais é baseada em antenas fixas em vez de satélites, quando ambas as tecnologias estavam disponíveis no início dos mesmos? Porque é que a localização com base em GPS se generalizou com recurso a hardware específico em vez de se ter tornado uma função dos telemóveis, como apenas agora começa a acontecer, quando a tecnologia para ambas as opções estava disponível desde o início? O que é que faz com que uma empresa seja bem-sucedida no lançamento de uma solução e outra igualmente válida não? Existem tantas respostas a esta questão quantas as situações a analisar.

 

As estratégias empresariais falham ou são bem-sucedidas por inúmeras razões e nunca conseguimos prevê-las todas: obsolescência da tecnologia, mudanças na legislação aplicável, força dos concorrentes para bloquear a entrada no mercado, marketing ineficaz, recursos insuficientes, timing de lançamento, implementação deficiente, especulação na matéria-prima, flutuações cambiais, crises financeiras, terramotos, guerras, ataques terroristas, etc., etc.

 

A verdade é que a complexidade das empresas e do contexto empresarial tem um conjunto de implicações para a forma como pensamos a estratégia, que nem sempre são entendidas.

 

Quando uma estratégia é apresentada com pompa e circunstância, sustentada numa apresentação em powerpoint cheia de números, setas e caixas de texto, todos abrimos a boca de admiração e reverência e ninguém pergunta o essencial: quais são os mecanismos de ajustamento e revisão que garantem que a estratégia poderá ser bem-sucedida? Ou, por outras palavras, como é que saberemos atempadamente onde e como é que ela está errada?

 

Se as nossas visões do futuro são limitadas pelo conhecimento do presente, então o mais certo é que os cenários em que a estratégia se baseia venham a provar-se incompletos, irrealistas ou errados. Se não nos apercebermos a tempo do que precisa de ser corrigido, falhamos. A estratégia inicialmente definida sofre por vezes tantas redefinições para que funcione que dificilmente seria reconhecida pelo autor se este não acompanhasse as suas mutações. Mas continuamos a defender que é a mesma. Porquê?

 

A imagem que temos do que é liderar uma organização inclui a posse de uma visão de futuro como atributo fundamental. Por isso ninguém gosta de dar a mão à palmatória e dizer que erra. Mas erramos muito.

 

Estratégias emergentes: aprender a agir antes de pensar

 

A verdadeira liderança não está tanto na arte de criar uma visão inspiradora, mas mais na capacidade de criar um modelo de organização que consiga (1) desenvolver uma estratégia adequada a um determinado contexto e (2) implementá-la com eficácia (3) mantendo um grau de flexibilidade que lhe permita mudar o curso de acção a qualquer momento. Isso aumenta a probabilidade de sobrevivência da empresa face à imprevisibilidade do mercado.

 

Mas quer a definição de uma estratégia, quer a sua implementação eficaz, ou substituição, dependem da capacidade que a organização tem de recolher e interpretar informação com qualidade e rapidez suficiente.

 

O problema é que em sistemas complexos, como o mercado em crescente globalização e desregulamentação, a relação entre a causa e o efeito dos acontecimentos só pode ser conhecida em retrospectiva e não tem um padrão de repetição previsível. Assim, é muito difícil acertar numa estratégia adequada a partir de “simples” informação de mercado que, na maioria das vezes, é recolhida com base em estudos ou em resultados das acções de outros jogadores. Nada nos diz sobre como é que o mercado reagirá às nossas próprias acções.

 

Para ser eficaz num sistema complexo é preciso definir a estratégia depois de agir. Não, não é ficção científica é “Estratégia Emergente” e defende que para gerir eficazmente em contexto de complexidade é preciso utilizar a informação da reacção do mercado às suas acções para definir a estratégia.

 

Começamos por desenhar e implementar probes em pequena escala para recolher informação do comportamento do contexto externo e interno da empresa. O lançamento de produtos e serviços, a implementação de sistemas de gestão, a criação de procedimentos, acções de comunicação, entre outras, podem ser probes.

 

Virtualmente qualquer acção de uma empresa pode ser um probe desde que seja desenhada como mecanismo de recolha de informação estratégica. Permite que os erros saiam mais baratos do que aconteceria se a empresa dedicasse todos os seus recursos a implementar uma estratégia definida a priori.

 

Como os probes são lançados para testar diferentes cursos de acção não poderão ser todos bem-sucedidos. A partir do padrão de sucesso e insucesso dos diferentes probes podemos interpretar os diferentes elementos constituintes da estratégia a desenhar. A estratégia “emerge” assim das nossas acções, e não o contrário.

 

Embora muito se fale de complexidade, as empresas continuam a aplicar em situações complexas os mecanismos habituais de benchmarking de boas práticas ou de melhores práticas e a sofrer com isso. Em situação de complexidade, o que resulta num dado momento e contexto do mercado não nos dá qualquer garantia de resultar de novo.

 

O que vai conquistar o mercado de amanhã não existe hoje, tem de ser criado. E a melhor forma de o fazer é assumir que não fazemos ideia do que será, mas que podemos incluir mecanismos de aprendizagem na nossa organização para que consiga descobri-lo.

 

Para começar, isto exige substituir a ideia do líder visionário pela do líder em aprendizagem permanente, cujo papel é instigar o desassossego intelectual da empresa e levá-la a inovar. E depois preparar a organização para reconhecer a estratégia que emerge dos resultados das suas próprias acções.

 

Por vezes é difícil, para um gestor de topo, aceitar a ideia de que não tem o dom de prever o futuro, e que nem sequer precisa de o ter. Mas quanto a isso não se preocupe, nem os profissionais do cinema são credíveis a fazê-lo. E eles nem sequer têm de o criar, basta-lhes imaginá-lo.

 

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