6 Junho, 2019
Posted in Imprensa
28 Maio, 2020 Ricardo Vargas

O engano dos pobres

In Executive Digest

Ciclicamente aparecem estas conversas. Dizem-nos que o ócio é bom, que o ócio faz bem, que o trabalho não dá saúde nem faz crescer. Que o importante da vida é o que passa ao lado da profissão. Que ser criativo depende do tempo livre que temos. Que para usufruir da vida que nos sobra é preciso passá-la a descontrair.

 

 

 

 

Filosoficamente não há nada contra. O hedonismo, enquanto modo de vida, é uma corrente tão válida como outras, e mais sedutora que a maioria. É sobretudo adequado ao momento estival que atravessamos. No entanto, há uma falácia que me perturba, sempre que deparo com estas mensagens: é o seu conteúdo universalista.

 

O valor do ócio foi inflacionado pela revolução industrial. Ao alugar mão-de-obra não pensante, pagando por trabalho indiferenciado, atribuiu automaticamente um valor potencial ao tempo desocupado que a força de trabalho poderia vender ao dono dos meios de produção.

 

O conceito trabalho indiferenciado é central nesta ideia, porque é da observação que a ocupação que temos não nos preenche, antes nos desgasta e consome, que surge a ideia que precisamos do ócio para progredir, para nos recompormos.

 

No século vinte, a “cabeça-de-obra” substituiu simultaneamente a mão-de-obra e os meios de produção de uma assentada. No entanto, há quem ainda pense o trabalho em termos de aluguer de tempo. Se o que faço me preenche e me desenvolve, enquanto pessoa e profissional, qual é o valor do ócio? Se estou totalmente no que faço a cada momento, porquê querer estar noutro lado, a fazer outra coisa?

 

Como distinguir o que é ócio do que é trabalho na vida de um pintor? Quando faz um esboço no café é ócio; quando pinta uma tela para expor é trabalho? E se o esboço for a ideia para a tela? Como fazer a distinção na vida de um jornalista? A entrevista com o gravador na mão é trabalho; o interesse na conversa com alguém é descanso? E se a informação da conversa der uma peça jornalística?

 

A distinção entre ócio e negócio (neg + otiu, a negação do ócio) é arbitrária e deriva de uma concepção ultrapassada do trabalho. Numa economia baseada em conhecimento o valor do ócio cai na bolsa da vida.

 

Tudo o que conquistamos tem um preço, e o preço do ócio é o negócio.

 

Tentem dizer ao trabalhador estudante que os fins-de-semana na praia são importantes. Defendam perante o empreendedor que está a arrancar a sua empresa do zero, que as férias são indispensáveis. Convençam o investigador que persegue uma descoberta no laboratório noites a fio, que ele devia passar mais tempo na cama, a dormir. Repitam a quem acredita no valor e na importância do seu trabalho que descansar mais é indispensável para se ser criativo.

 

Alguém acredita que as inovações da engenharia, da medicina, da música, das ciências em geral, foram conseguidas sem trabalho árduo? Sem estudo dedicado?

 

Melhorar, passar do nível económico, cultural, técnico, social ou educativo em que se está, para outro superior, exige esforço e trabalho. Quem conquistou o sucesso sabe do que teve que abdicar, e se lá chegou não chora o ócio com que o pagou. É só para os pobres sem espírito, para quem acredita que a satisfação das suas necessidades é responsabilidade alheia, que o valor do ócio é aliciante.

 

São exactamente as pessoas que mais precisariam de lhe resistir, que mais precisariam de trabalhar para sair da situação em que estão, as que são seduzidas pelo romantismo do ócio.

 

A valorização social do ócio é o engano com que os pobres se contentam em permanecê-lo. Abençoados sejam.

Artigo originalmente publicado a 28 de julho de 2006.

 

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