21 Outubro, 2020
Posted in Imprensa
1 Julho, 2021 Ricardo Vargas

Uma estratégia digital para a liderança?

In Human Resources Portugal, Julho 2021

Algumas mudanças são assim. Entram de rompante pela nossa vida e não deixam pedra sobre pedra. Mas tempo depois a vida volta ao que era. Outras mudanças marcam a vida para sempre. As coisas não voltam a ser o que eram porque as perdas foram demasiado grandes, porque a nossa maneira de entender a realidade mudou, ou por conjugação de ambas. O terramoto de 1755 mudou não só a arquitetura do século XVIII, mas também a relação filosófica da Humanidade com Deus. O mundo não voltou a ser o mesmo.

 

 

Os problemas criados pelo aparecimento do SARS-CoV-2 e pela forma como lidámos com ele, entram nesta categoria de mudanças. As empresas foram obrigadas a enviar as suas pessoas para casa e o relacionamento interpessoal passou de presencial para virtual. O confinamento forçou as empresas a encontrar novas formas de liderar, mas algumas ainda acreditam que depois disto vão voltar à forma anterior de gerir pessoas. Que os modelos presenciais, mesmo que regressem, serão idênticos ao que eram antes.

Num exercício de risk assessment e scenario planning, em que participei com colegas de vários países em Março de 2020, categorizámos a emergência Covid-19 como um slow moving disaster. Enquanto o mundo repetia o slogan “duas semanas para achatar a curva”, avisámos os nossos clientes que a perturbação global iria crescer em avalanche e que iria durar entre dois e cinco anos. Que não fazia sentido distinguir entre saúde e economia nas soluções implementadas, porque uma não existe sem a outra. Precisávamos por isso de soluções sistémicas globais. E as empresas teriam de se adaptar rapidamente a novas formas de trabalhar, o que requeria novas formas de liderar.

Quando distribuímos a força produtiva de uma empresa, precisamos de distribuir também a sua liderança. Temos de gerir as pessoas onde estão, não onde elas teoricamente trabalham. Após o período de “esperar para ver” o que o confinamento dava, que em muitos casos entrou pelo segundo semestre de 2020 adentro, a maioria das empresas lá se adaptou à nova realidade.

 

Primeiro foi a transposição

A primeira adaptação à disrupção foi uma transposição. Os gestores continuaram a fazer o que já faziam, mas à distância. Em vez de comunicar com as pessoas presencialmente, passaram a comunicar à distância. Em vez de reunir na mesma sala, passaram a reunir numa plataforma digital. Em vez de telefonar, enviavam mensagens na app. Mas não mudaram a forma de comunicar, reunir, nem de acompanhar as equipas.

Se antes tínhamos um dia de reuniões presenciais, passámos a ter um dia de reuniões virtuais. Se antes tínhamos interrupções presenciais, passámos a interrupções à distância. Se antes controlávamos as pessoas observando o que faziam, passámos a (tentar) controlá-las perguntando-lhes dez vezes por dia o que fazem. Se não tínhamos tempo para dar feedback, isso não melhorou. Se já nos debatíamos para promover o desenvolvimento das pessoas, não passámos a fazê-lo mais facilmente.

A mudança de canal da relação não é uma mudança de substância, é uma mudança de formato. Uma relação transacional não muda de natureza por passar a digital. Quando se tem um modelo de gestão da equipa baseado em centralização da decisão, controlo da execução e foco exclusivo na tarefa, a qualidade da relação não melhora por passar a ser distribuída digitalmente. Pelo contrário, pode até piorar.

 

Depois veio a “fadiga Zoom”

No fim de 2020 começámos a ouvir falar de “fadiga Zoom”. O sucesso da plataforma Zoom fez com que o seu nome fosse associado a um fenómeno global em que as pessoas começaram a fartar-se de estar oito horas por dia frente à câmara, em reuniões, webinars, calls, e outros processos penosos. A produtividade que tinha crescido no início do confinamento, começou a sofrer.

Mas a fadiga não é do canal digital por si, é de coisas que não funcionam no digital porque já não funcionavam presencialmente. E qual foi a resposta? Fazer à distância o que já fazíamos presencialmente para descontrair. Transpusemos para digital as actividades presenciais que nos permitiam descontrair das actividades de trabalho presenciais que tínhamos transposto para digital e nos provocavam fadiga. Passámos a ter cafés virtuais com o chefe, encontros informais com a equipa, actividades de teambuilding online, jogos e animação à distância. Nada contra estas actividades em si. Mas fazer mais do mesmo que provoca o problema não costuma resultar.

 

A oportunidade de uma liderança nova

O digital trouxe (mais) uma oportunidade de repensar a relação de liderança que ainda não foi realizada por muitas empresas. A digitalização de uma relação transacional continua a ser uma relação transacional. Se o foco do líder está no seu benefício imediato, a relação torna-se um veículo de entrega de resultados, uma transação que pode acontecer presencialmente ou à distância, é indiferente.

Uma relação é uma sequência de interações subordinadas a um propósito: amizade, parceria, liderança ou outro. Para categorizar a relação como de “liderança” as diferentes interações que a compõem devem ter um valor específico para a outra parte – neste caso o colaborador “liderado”. Avaliar o valor individual das interações do ponto de vista do outro é um progresso necessário, mas a liderança deve ir mais além.

O propósito da relação de liderança é transformar o outro para que ele supere o seu potencial atual e atinja objetivos excecionais. Este é um propósito global que deve subordinar a sequência de interações que acontece ao longo do tempo, quer estas aconteçam presencialmente ou à distância.

Quando passámos a relação de liderança para o canal digital, perdemos uma oportunidade de lhe fazer um upgrade. Agora que a vamos passar para o canal híbrido, temos uma nova oportunidade de a transformar.

Passar de uma relação exclusiva no canal presencial síncrono a uma relação híbrida que inclui o canal digital, síncrono e assíncrono, é como passar de ouvir música em mono para estéreo. Mas se a música for má, a qualidade da aparelhagem não interessa. O digital não emenda os comportamentos errados das chefias. Comando e controlo presencial ou à distância podem ter diferenças de forma, mas não de substância.

 

Uma estratégia digital para a liderança?

Não houve uma estratégia digital para a liderança, porque não havia estratégia para ela antes e não parámos para pensar o que queríamos com a sua passagem para o digital. A maioria das pessoas acreditava que seria temporário e chutou a bola para a frente, mesmo que a baliza certa não estivesse naquela direção.

Assim, na transição presencial-digital muitas empresas focaram-se em competências de comunicação à distância, apenas porque esse era o défice premente. A tecnologia foi utilizada sobretudo para comunicar, o que é transacional e cria dependência da presença síncrona do outro. Porque não viam o que as suas equipas estavam a fazer, as chefias sentiram necessidade de aumentar a frequência da comunicação, criando a “fadiga Zoom”.

Quando distribuímos a empresa no espaço, precisamos de gerar autonomia, confiança, competências e accountability de níveis diferentes, porque não é possível estar sempre em contato com a equipa.

Na passagem para uma liderança à distância, a comunicação tem de ser substituída por compreensão. Eu tenho de compreender (do latim “agarrar”) o que o outro sabe, pensa e sente face ao projeto comum da empresa. E ele tem de compreender o seu papel e benefícios na criação da realidade futura da empresa. A compreensão exige comunicação, mas existe na sua ausência. É a compreensão que permite prosseguir trabalho em ambientes complexos e ambíguos na ausência de instruções diretas. É a compreensão individual e partilhada do projeto e da relação que abre a possibilidade de transformação – propósito da liderança.

A tecnologia faz parte de um ecossistema que promove a produtividade nas empresas, em conjunto com a cultura empresarial, a sua estrutura e processos. Cada um destes elementos capacita as relações de trabalho com ferramentas específicas, que devem ser tidas em consideração na definição da estratégia de liderança de cada empresa.

A tecnologia permite automatizar alguns processos de liderança e libertar recursos para atividades de maior valor acrescentado. Mas tudo começa com a definição do papel e propósito da relação de liderança. A tecnologia capacita este novo papel e propósito. Não temos uma nova liderança por causa da tecnologia. Temos uma nova liderança por causa da adaptação da estratégia da empresa a um mundo digital, que utiliza a tecnologia como facilitador.

Entender a “liderança digital” como aquisição de competências de relação á distância através de tecnologia, sem definir primeiro o seu papel e propósito em alinhamento com a visão e estratégia da empresa é subordinar o propósito ao canal. Esta definição estratégica é urgente para que não se perca mais uma oportunidade de atualizar a cultura, práticas e resultados da liderança ao futuro desejado da sua empresa.

 

 

 

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